terça-feira, 26 de maio de 2015

Resenha: Bom Dia Camaradas


O narrador de “Bom dia camaradas” é um garoto angolano de Luanda que, em meio a brincadeiras e aulas, nos apresenta o panorama do país nos anos 90. Ao optar por não batizar seu protagonista e não datar precisamente os fatos, Ondjaki amplia consideravelmente a identificação do leitor com os acontecimentos daquele país distante, mas que guarda mais semelhanças com o nosso do que podemos imaginar à primeira vista.

O nome do protagonista não é mencionado no livro, mas há dicas de quem serviu de inspiração: em determinado momento, o menino conversa com a tia sobre o herói de seus textos, chamado Ndalu (que, por acaso, é o nome verdadeiro do autor). Logo, podemos inferir que as memórias do narrador são lembranças ficcionais da infância do escritor. O período exato da ação também não é informado, mas pelos acontecimentos históricos retratados como pano de fundo (professores cubanos voltando para casa e anúncio da criação de outros partidos políticos) é possível definir que a trama se desenrola nos anos 90.

Para quem não conhece nada sobre a história de Angola, um resumo rápido: foi colônia de Portugal até 1975, quando se liberta. No entanto, de liberdade o país não vê nada, pois entra em uma violenta guerra civil, durante a qual três movimentos libertários disputam o poder: um com o apoio dos capitalistas dos Estados Unidos, um com o suporte das forças armadas do apartheid da África do Sul, e um sob o controle dos socialistas (Cuba e ex-União Soviética). A história se passa no comecinho dos anos 90, quando o governo angolano publica uma lei que autoriza a criação de novos partidos políticos e os cubanos deixam o país (é exatamente esse momento conturbado que o livro reflete).

Enfim... o protagonista, como qualquer criança, fala das brincadeiras com a turma, da bagunça com os colegas de escola, do cotidiano familiar. Pelos seus olhos infantis, vemos o quanto o país está desestabilizado: as aulas são frequentemente interrompidas porque alunos e professores fogem em disparada quando veem um carro se aproximando – o grupo Caixão Vazio, que aterrorizava as escolas, pois tinha a fama de estuprar mulheres, roubar crianças e matar professores. Outros indícios desses tempos difíceis surgem quando a tia portuguesa do narrador, que está passando uns dias em sua casa, quase leva um tiro por tirar fotografias (algo proibido naquela época), ao não entender porque deveria sair do carro e ficar com as mãos à vista quando a comitiva do presidente se aproxima deles na rua, por querer nadar em um pedaço de mar que pertencia ao exército soviético.

Para ela, estrangeira e residente em um país livre e democrático, tais procedimentos eram chocantes e absurdos, enquanto para o jovem sobrinho (e também para aqueles que eram obrigados a viver naquela situação) tudo era normal e lógico – o estranho era saber que em Portugal não havia cartão de racionamento e que o presidente ia comprar jornal a pé aos domingos.

Uma característica que difere os personagens principais de “Bom dia camaradas” daqueles de outros livros africanos que já li é o fato de todos serem representantes da classe média. Em geral, o que se vê (e se pensa) quando o cenário é o continente africano (com exceção da África do Sul) diz respeito a pessoas pobres, muitas vezes pertencentes a tribos e vilarejos longínquos. Aqui, este não é o caso: as crianças moram em casas boas e confortáveis, as famílias têm empregados, o próprio protagonista às vezes chega à escola no carro oficial (o pai é funcionário do governo), os amigos têm relógios caros. A gente simples é retratada pelos empregados (que moram longe, mas vão trabalhar a pé) e pelos professores cubanos (que vivem em apartamentos mofados e servem chá que é pura água e açúcar).

Este é o segundo livro que leio do Ondjaki (o primeiro foi “Os da minha rua” e tem resenha AQUI) e mais uma vez ele me encantou pela forma singela e engraçada como retrata a infância, a rotina e até mesmo a violência. Muitos personagens de “Bom dia camaradas” são os mesmos do outro livro, então tive a impressão de reencontrar velhos amigos. Mas este, ao contrário do anterior, tem uma estrutura linear e cronológica. A oralidade marca presença novamente (assim como o glossário nas últimas páginas), dando um sabor especial à leitura.

"Pela janela enorme entrava luz, entrava o som dos passarinhos, entrava o som da água a pingar no tanque, entrava o cheiro da manhã, entrava o barulho das botas dos guardas da casa ao lado, entrava o grito do gato porque ele ia lutar com outro gato, entrava o barulho da despensa a ser aberta pela minha mãe, entrava o som de uma buzina, entrava uma mosca gorda, entrava uma libélula que nós chamávamos de helibélula, entrava o barulho do gato que depois da luta saltava pro telheiro de zinco, entrava o som do guarda a pousar a aká porque ia se deitar, entravam assobios, entrava muita luz mas, acima de tudo, entrava o cheiro do abacateiro, o cheiro do abacateiro que estava a acordar".

Uma leitura rápida e agradável, apesar da realidade dura que nos apresenta. Mais que recomendado!

Este post faz parte do Desafio Literário Skoob 2015 - Mês de Maio: Livros originalmente escritos em português. Para ver a apresentação do desafio, minha lista de obras selecionadas e outros posts do DLSkoob2015, clique AQUI. 

3 comentários:

Eduarda Sampaio disse...

Os escritores africanos chegaram com tudo, né? Eu realmente sabia muito pouco sobre Angola, então sua contextualização foi providencial ;)
Beijo!

Jacqueline Braga disse...

Oie Mi
gosto de livros que retratam a infância (aprendi a gostar depois da overdose de Modiano), e nunca li nada ambientado na Angola. Anotei aqui na minha lista de querências.
bjos
www.mybooklit.com

Lígia disse...

Adoro o Ondjaki. Não sabia que "Bom dia, camaradas" tem os mesmos personagens de "Os da minha rua" (e consequentemente, de "AvóDezanove"), agora fiquei com mais vontade de ler :)