segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Leia o Livro, Veja o Filme: Corações Sujos

LIVRO: CORAÇÕES SUJOS

O fim da segunda guerra, em 1945, dividiu a imensa colônia japonesa do estado de São Paulo em dois grupos: os kachigumi ou vitoristas, grande maioria dos imigrantes japoneses que eram extremamente fiéis ao Imperador Hiroíto e se recusavam a acreditar que seu país natal havia perdido a guerra; e os makegumi ou derrotistas, minoria dos colonos que acreditavam na rendição do Japão. Assim nasceu a Shindo Renmei, ou “Liga do Caminho dos Súditos”, uma associação que pretendia manter vivo o yamatodamashii, o modo de vida japonês, eliminando, para tanto, todos aqueles que optassem por acreditar na verdade.

“Você tem o coração sujo, então deve manter a garganta lavada...”
Traduzindo: “Você é um traidor do grande império japonês e vai morrer”. Era com esse recado direto que a Shindo Renmei informava aos derrotistas sobre seu destino.

O livro de Fernando Morais é resultado de uma vasta pesquisa que revelou uma parte da história brasileira que parece ficção. Até a publicação de “Corações Sujos” e sua posterior adaptação para o cinema, pouquíssimas pessoas conheciam a saga dos “7 heróis de Tupã”, homens comuns que se uniram para demonstrar sua fidelidade ao imperador japonês e o orgulho de suas origens. 

O fato é que o governo brasileiro teve um papel decisivo na criação da Shindo Renmei e de outras associações do gênero, que surgiram depois das duras restrições impostas aos japoneses: proibição do uso de sua língua materna, fechamento das escolas das colônias, apreensão de rádios, suspensão de veículos impressos em língua japonesa e tomada de dinheiro e terras, entre outras coisas.

A repressão do governo só piorou o sentimento dos imigrantes de estarem perdidos em uma terra estranha sem nenhum contato com a terra natal e aumentou o preconceito que a população brasileira tinha contra eles (alimentado publicamente pela imprensa). Linchamentos de colonos aconteciam em praça pública e assassinatos dos corações sujos eram recorrentes, mas a polícia estava ocupada demais para investigar, pois sua prioridade era acalmar as revoltas populares que clamavam pelo fim da ditadura, controlar as greves que pipocavam por todo lado e monitorar os jornais que se libertavam da censura.

O saldo dos 13 meses de atuação da Shindo Renmei é alarmante: 23 mortos e 147 feridos. Durante o período em que a polícia tentava descobrir quem estava por trás do grupo de extermínio, 31.000 japoneses foram presos, 381 denunciados e 80 condenados à expulsão do país (que foram perdoados por Juscelino Kubitschek).

Fiquei chocada com a descoberta dessa parte da nossa história que não consta em nenhum livro didático. Principalmente porque os japoneses têm uma imensa influência na cultura paulista e sempre me pareceram os imigrantes mais queridos por aqui (talvez atrás dos italianos apenas). Eu não fazia ideia do quanto a colônia havia sofrido na época da guerra e nem em sonho poderia imaginar essa luta interna. Interessante e muito triste.

Os acontecimentos narrados no livro são baseados em documentos, arquivos da imprensa, depoimentos e entrevistas com os poucos envolvidos que ainda estavam vivos no ano 2000. O livro conta ainda com fotos de época. A linguagem é bem jornalística e se atém aos fatos. A única dificuldade que tive foi com a grande quantidade de nomes envolvidos. De resto, é uma leitura simples, mas cheia de detalhes, o que compromete um pouco a velocidade.

“Como espectros que tivessem surgido do nada, às nove horas da noite sete japoneses descalços, com idades variando entre vinte e 41 anos, sérios e com ar decidido, postaram-se diante da delegacia de polícia. Uns traziam nas mãos porretes de madeira semelhantes a tacos de beisebol. Outros estavam armados das mortais catanas, sabres embainhados em bambu trabalhado, em cujo interior ocultava-se uma afiada lâmina de aço curva, de oitenta centímetros de comprimento. Eles usavam calções ou tinham a barra das calças arregaçadas até a metade da perna, como se tivessem acabado de chegar da lavoura (...). Como o prédio da polícia ficava em plena avenida Tamoios, no centro da cidade, para chegar até lá tiveram que atravessar uma Tupã às escuras – uma aparição que assombrou os moradores das imediações, que fecharam portas e janelas à aproximação do grupo silencioso. Alguma coisa ruim estava para acontecer.”

Essencial para conhecer um pouco mais sobre nossa história e, de quebra, acompanhar uma aventura que parece ter saído da mente de algum cineasta.



Este post faz parte do Desafio Diversidade Literária 2014 - Mês de Fevereiro: Romance Histórico. Para ver a lista de obras selecionadas e outros posts do DDL2014, clique AQUI. 


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FILME: CORAÇÕES SUJOS

O filme é a versão ficcional romanceada inspirada no livro de mesmo nome. A história é narrada por Miyuki (Takako Tokiwa), professora primária e esposa de Takahashi (Tsuyoshi Ihara), fotógrafo que passa a fazer parte do grupo de matadores.


O foco do filme é a transformação de um homem simples, profissional dedicado e marido amoroso em assassino. O filme evidencia o lado de pessoa comum que se envolve com a matança para defender seus princípios, mas que luta com os dilemas morais e, ao longo da trama, passa a questionar a si mesmo e a organização.


Ao mesmo tempo, temos a visão de Miyuki, que luta por seu amor. Ao contrário do livro, que pouco menciona as mulheres (já que elas não se envolviam nos acertos de contas e nas reuniões da Shindo Renmei), aqui vemos o sofrimento das esposas e filhas. É possível sentir os temores de Miyuki e suas emoções conflitantes, pois ao mesmo tempo em que quer apoiar o marido e sua defesa do orgulho japonês, ela também quer que ele volte vivo para casa. Uma das cenas mais bonitas é aquela em que Miyuki enrola no corpo do esposo a bandeira do sol nascente (aquela com os raios), símbolo da marinha imperial do Japão, ajudando-o em sua preparação para o combate.


Além disso, o filme mostra muito bem a insanidade que era perseguir um vizinho e amigo só porque ele acreditava na rendição do império japonês. Pessoas que estavam sempre juntas, se empenhando no desenvolvimento da comunidade e participando de comemorações, de repente de viam de lados opostos de uma guerra particular. 


A maioria do elenco de “Corações Sujos” era de atores japoneses, que não falava português nem inglês. A comunicação entre diretor e atores só acontecia por meio de intérprete. Segundo consta, o filme foi bem recebido no Japão, onde, assim como no Brasil, a existência das divergências entre os imigrantes era desconhecida.

Não tem a mesma força do livro, mas é uma história bonita e desperta a curiosidade sobre o que de fato aconteceu.

Trailer legendado:

2 comentários:

mm amarelo disse...

Nossa, Michelle, essa história parece ficção mesmo. Muito chocante. Esse mês andei vendo uns livros do Fernando Morais e desejando ler mais alguma coisa dele. Li "Olga" há tempos, mas acho que quero encarar "Chatô, o rei do Brasil".
Bjs!
Maira

Anônimo disse...

Lembro que comentei com você (no post da TAG: Nacionais da Minha Estante) que não sabia que o filme tinha sido baseado em um livro. Ainda não adquiri o livro, mas acho que vou começar pelo filme, pois pelo que entendi da sua resenha a obra literária tem um tom mais jornalístico. Então acho que nessa ordem (filme > livro) não terei a leitura comprometida. Beijos, Michelle!